Whitechapel



    - Preste atenção no trabalho, garoto! – rugiu Tenpenny. – Se errar um corte, vai sair do seu pagamento!

Saindo do transe em que se encontrava, Will assentiu e começou a ajudar o açougueiro na custosa tarefa de pendurar as carcaças dos porcos que vieram do abatedouro nos respectivos ganchos.

O londrino William Peck era aprendiz do açougueiro Lewis Tenpenny havia dois anos e, apesar de tudo, gostava do velho. O velho tinha uma juba espessa, que um dia fora ruiva, tomada por fios prateados e presa num rabo de cavalo. Além disso, uma barba robusta que combinava com sua generosa barriga. Will por sua vez era uma figura digna de compaixão, uma presença melancólica. Magro, cabelo escuro que escorria pela face, ombros curvos e olhos afiados. Não fora sempre assim. 

Muito era diferente antes do açougue. Quando Will ainda sorria ele tinha Hannah, sua noiva. Ela fora levada pela peste dois anos antes. Não tinham posses, mas eram felizes. Ele provia. Hannah tinha pálidas mexas douradas, e seus olhos eram amendoados. Will ainda lembrava da sensação de beijar-lhe as sardas do rosto levemente, e de como sua pele era doce. Quando ela se foi e o rapaz caiu em desespero, Tenpenny lhe ofereceu emprego como aprendiz, talvez por pena ou solidariedade. Lá estava ele desde então. 

O devaneio de Will foi habilmente interrompido por uma mão pesada que encontrou a sua orelha, com força considerável. Tenpenny o chamava de volta ao trabalho, o rosto vermelho como um pimentão. Ele não reclamou. Para o rapaz, manejar a faca era a parte mais satisfatória do ofício. Ele conhecia as formas e golpes precisos que apagariam a luz no olhos de qualquer ser vivo em segundos. Entretanto os animais não resistiam, e tudo era mais simples. 

Primeiro abriam-lhes as gargantas. Dois cortes fundos e precisos no pescoço eram o suficiente para faze-los sangrar até a morte. Eficiente. Depois disso, os corpos eram levados até eles para serem efetivamente eviscerados. Pendurados nos ganchos, os animais tinham o abdome aberto por um corte longitudinal, bem no centro, por onde os intestinos, o estômago e o baço se esvaiam. “Uma visão e tanto”, pensava Will, com um sorriso. “Uma obra de arte diferente cada vez que a lâmina toca a carne”. 

O passo seguinte era penetrar o diafragma para que se pudesse ter acesso ao coração, pulmões, traqueia e fígado, a fim de removê-los também. Órgão fascinante, o coração. Com habilidade suficiente era possível removê-lo ainda vivo do corpo, ainda batendo. Mesmo que por um breve momento. Will apreciava a sensação. Sua habilidade com era inegável, uma segunda natureza, e Tenpenny sabia disso. Talvez por essa razão tolerasse sua personalidade arredia. Will realizava seu trabalho com presteza e incomum prazer. 

Após limparem alguns porcos, os dois jogaram fora os baldes de sangue e vísceras dos animais mortos. Com tempo de sobra e o açougue ainda fechado, Tenpenny propôs uma pausa. Sentaram-se numa mesa aos fundos da loja e serviram duas doses de gim. Os copos se esvaziaram de imediato, e foram enchidos novamente. Após olhar para o vazio por um momento, Tenpenny disse:

    - Sabe, Will... estou ficando velho. Sinto que meus joelhos vão falhar a qualquer momento, e já não tenho mais a energia de antes. Eu sei que – ele baixou os olhos. – Os últimos anos não foram gentis com você, então quero que saiba que...

Will o interrompeu.

    - Não, Lewis. – retrucou o rapaz. – Não tenho intenção de tomar o açougue para mim. Na verdade, muito em breve Londres esquecerá que um dia eu estive aqui.

Sob sua barba, o pouco que se podia ver dos lábios de Tenpenny se tornou uma linha ainda mais fina e sem cor. Ele fitou Will, que continuou:

    - Estou indo embora. – disse o rapaz, com um sorriso triste. – Guardei algum dinheiro, e para mim chega. Vou para o campo, morrer tranquilo.

    - Não desista de tudo assim, garoto. – retrucou Tenpenny. – Existem tantas donzelas no mundo, todas tão virtuosas...

Novamente o açougueiro foi interrompido, dessa vez de forma mais brusca.

    - Não como Hannah, Lewis. – dizendo isso, Will tirou um pequeno amuleto do bolso, e começou a rodá-lo entre os dedos. – Não existe alguém como Hannah. E eu vou vê-la de novo.

Dito isso, a expressão de Will tornou-se uma uma ameaça sutil. Tenpenny entendeu aquilo como o fim da conversa, virou seu copo de gim e foi tratar de abrir a loja, resmungando. Will permaneceu sentado, brincando com o amuleto. Era feito de osso, e representava uma caveira de bode montanhês, os longos chifres dando voltas. 

Lá fora podia se ouvir o jornaleiro cantando as notícias. “Polícia recebe carta de assassino”, esganiçava a criança. “O criminoso se intitula Jack, o Estripador”. Will não pôde evitar o riso. Jack, o Estripador. Algum imbecil anônimo certamente era bem criativo. Antes de voltar ao trabalho, ele beijou o amuleto e pensou. Só mais uma. Uma mulher, e ele teria Hannah de volta. Um ritual, e Mefistófeles a traria de volta à vida. Tudo pelo custo de sua miserável alma. “Como Fausto antes de você”, dissera o diabo. 

Como Fausto, seria.

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