Quatro Pernas


Ilustração por Mathieu Monluc

O tempo não afeta um espaço que é verdadeiramente seu. A poeira, sim.

Amarrei um pano sobre o rosto antes que meus espirros se tornassem uma crise alérgica e então liguei a luz. A minha velha garagem estava do jeito que eu a deixei.

    - Vai uma cerveja? – meu pai surgiu atrás de mim.

    - Porra, sim. 

Afastei o pano do rosto por um momento. Fizemos um brinde e admiramos o ambiente por algum tempo. Foi ali, naquela oficina, que eu desenhei e construí meus primeiros móveis.

    - Achei que o ponto dessas férias fosse não mexer com isso, filhote. Ficar tranquilo. 

    - Eu sei. Mas tem algo que eu preciso testar.

O velho tinha um pouco de razão. Meu burnout me fez voltar para casa, depois de mais de uma década trabalhando numa grande empresa em São Paulo, e depois no meu próprio negócio. Mais de dez anos fazendo mobília de ponta para socialites com dinheiro demais e recém-casados com a ilusão de que seus amigos os visitariam nos fins de semana.

    - Quero ver se ainda sei fazer algo por mim.

Então, eu fiz uma cadeira.

Meu pai me ajudou a abrir a porta da garagem e trouxemos os materiais para dentro. Aquilo ajudou a ventilar um pouco o ambiente e, aos poucos, fomos tirando a poeira velha encrustada nas ferramentas. Tentei não pensar muito sobre o que eu estava fazendo.

Eu não limpava minha própria oficina há alguns anos. Em São Paulo, eu a chamava de ateliê. Foi um título que mudou quando o meu nome passou a assinar uma linha de móveis. Também passei a receber visitas de estudantes e alguns editores de revistas. De vez em quando, havia o convite para uma festa nos Jardins.

Mas e a cadeira? Corri os olhos pela madeira, lentamente. Uma Windsor? Talvez uma Wishbone, combinaria com a sala de jantar do velho. Eu estaria chamando-o de velho se fizesse uma cadeira de balanço?

Por um momento, estava de volta ao ateliê. Qual era o meu prazo? Aquilo era bom o suficiente para a vitrine? Onde estavam as minhas referências para a coleção? Onde eu iria...

    - Juliano. – Meu pai percorria o bigode com os dedos, repetidamente. – Você está com aquela cara de novo. Respire.

A voz do velho diminuiu um pouco a palpitação no meu coração, e eu percebi que não respirava há quase um minuto. Soltei o ar preso e inspirei novamente, bem devagar. 

    - Estou bem. Foi rápido.

Eu estava medicado há poucos meses, e de vez em quando as crises de ansiedade voltavam. Meu psiquiatra dizia que era parte do período de adaptação. 

Voltei a pensar na madeira. Só na madeira. Um dia, há muito tempo, eu amei aquilo. O sentimento de criar algo com as próprias mãos. O processo de pensar em cada detalhe, desenhar cada curva, cada encaixe, e como tudo simplesmente funcionava no final. Mas, em algum momento, isso me escapou. Eu não sabia dizer exatamente quando o amor foi embora. Nem mesmo sabia dizer se ele realmente sumiu.

Foi assim que eu decidi tirar um sabático. Um sabático. Sorri um sorriso involuntário enquanto arrumava tudo. Há alguns anos eu poderia socar alguém que falasse em sabáticos sem nenhuma ironia. Era uma atividade reservada apenas para herdeiros ou pessoas que ganhavam muito mais do que mereciam. 

Talvez, aos 39 anos, eu tivesse me tornado a segunda opção.

Meu antigo torno foi ligado pela primeira vez em uma década. O barulho inicial não foi bonito, mas ele pareceu se reencontrar após alguns segundos. Sorte a dele. Um a um, testei os equipamentos. Todos estavam funcionais, ainda que não em perfeito estado. Maravilha. 

Sentei-me na escrivaninha, tomei um gole da cerveja e comecei a desenhar. Meu pai andou pela garagem em direção à casa.

    - Vai ficar tudo bem por aí? – Ele perguntou da porta. Aos 70 anos, seus olhos finalmente começavam a perder o brilho.

    - Vai, sim. Se não estiver, eu dou um grito.

Meu pai entrou na casa, resmungando algo sobre um jogo e mais cerveja, enquanto eu vasculhava a memória em busca de ideias. Eu não sabia o que estava fazendo, nem o que eu iria criar. De certa forma, era libertador. Em algum momento, todas as minhas ideias passaram a ter um preço, prazo e objetivo. 

Na verdade, todas elas tornaram-se meios. Etapas no processo de criar uma coleção. Tive uma ideia. Deixei a prancheta de lado e reuni alguns materiais. Sem desenhos, sem planos e sem objetivos. Era só uma cadeira.

Eu estava cansado de odiar o que fazia, e por muito tempo pensei ter feito a escolha errada. Talvez aquilo não fosse realmente o meu sonho, nem o que eu queria fazer pelo resto da vida. Talvez fosse apenas um hobby, que eu tinha estragado para sempre ao perseguir uma carreira. Criar tinha se tornado uma responsabilidade, uma cobrança constante e o meio para um fim. Eu nem mesmo me dava direito ao ócio se ele não fosse produtivo.

Soprei as raspas e observei a primeira perna. Boa, não perfeita. Mas eu não podia exigir mais do meu equipamento e não queria que fosse perfeita. Demorei para entender que o meu valor não era definido pelo meu trabalho. Em São Paulo, ou você se sente um impostor, ou de fato é um.

Senti uma comichão familiar no peito enquanto terminava a segunda perna. Era como estar apaixonado por uma pessoa e olhá-la diretamente nos olhos, só para perceber que era correspondido. Em que momento aquela sensação deixou de existir?

Talvez ela tenha sumido quando a cadeira deixou de ser o objetivo, eu pensei. Sempre um meio, sempre um processo. A coleção precisa ficar pronta, aquela cliente precisa do projeto para segunda-feira e eu preciso de mais dinheiro para começar os projetos que eu realmente quero fazer.

Parei o torno quando a terceira perna ficou pronta e a observei por um momento. Havia sempre um projeto. Algo que eu não podia fazer porque a rotina não me dava espaço. Porque eu estava cansado no fim do dia. Porque eu merecia um fim de semana tranquilo.

Porque começar algo novo sem buscar um resultado não fazia sentido. Era bom terminar a cadeira, mas pelos motivos errados. Fazê-la tinha se tornado um empecilho. 

Quando o processo é um obstáculo para o resultado, ele deixa de ser prazeroso. E assim, você passa a odiar o que faz. Eu repeti a frase que dissera ao meu terapeuta semanas atrás. A mesma frase que tirou o peso do mundo das minhas costas e me fez tirar férias em casa. Uma frase simples, que eu levei doze anos para formular.

Senti outro aperto no peito. Um dos bons. Segurei o riso, mas algo me dizia que podiam ser lágrimas. Eu tinha a minha última perna em mãos, com todas as suas imperfeições. Soltei o ar que parecia estar preso em mim há uma década.

Com cuidado, deixei a quarta perna junto às outras e fechei a porta da garagem. Dei uma última olhada para o pouco que fiz nas últimas horas e sorri. Eu não tinha por que ter pressa.

Naquele dia, quatro pernas bastavam.

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